JARDIM DE PALAVRAS
Um som estridente acordou Januário. Como um peso morto levou uma mão ao despertador. Este marcava 17h00. Nem mais nem menos um minuto, mas ele só saiu da cama às 17h02. Passava os dias a dormir e as noites acordado. Não se relembrava do momento em que começou a trocar as noites pelos dias. Só sabia que a paz da noite e a magia do luar lhe davam a tranquilidade que necessitava para viver.
Levantou-se e descalço percorreu o soalho morno do quarto até aos azulejos frios da cozinha. Sem precisar de acender a lâmpada, alumiou-se dos últimos raios de sol que ainda penetravam por entre as frechas da persiana da janela e eliminou os passos da porta ao frigorífico.
A visão que teve foi dececionante. Uma caixa de comida pré-congelada descansava nas grades e um pacote de leite magro pendurado na prateleira.
Desculpou-se com a intensidade da luz vinda do interior do frigorífico lhe queimar a vista, e de olhos fechados estendeu o braço para retirar o produto lácteo. Enquanto o sorvia, o ruído citadino das buzinas dos carros no meio do bulício da cidade chegaram-lhe até aos ouvidos como uma melodia. A campainha de um elétrico fez-lhe recordar o timbre da sua máquina de escrever quando chega ao fim da linha.
Vivia para ela. Para a sua Royal. Em tempos um instrumento revolucionário na forma de escrever, mas agora arcaico. Para ele pouco importava, talvez por também se considerar uma autêntica peça de museu.
Memoriou o dia em que a sua vida mudou radicalmente e passou a dedicar todo o seu tempo à escrita. Podia ter sido apenas há umas semanas, meses ou anos, não tinha precisão… nem sequer registava o que fazia antes.
Só o momento em que desistira de viver em sociedade e passara a ser um eremita no seu pequeno apartamento de duas assoalhadas. Já não sabia em que cidade morava, só sabia que enquanto a maior parte da metrópole dormia, ele levava as horas a semear palavras, cultivando-as tão minuciosamente até construir um jardim.
As paredes estavam recheadas de jardins de palavras. Dos seus e dos outros. Os livros eram o seu mundo, mesmo os esquecidos, para ele estavam sempre vivos.
Passava noitadas atrás de noitadas a absorver páginas e páginas de literatura como um bêbado o faria com litros e litros de bebida, na ânsia de se atulhar na essência das palavras e do seu significado.
Cuidava das estórias de um livro como se de uma planta, uma flor ou mesmo um fruto prestes a desabrochar se tratasse. E quando passado anos as estórias amadureciam, ele nunca deixava que apodrecessem ou morressem. Voltava a pegar nos livros e de novo repetia o processo de total embriaguez.
Contava os minutos para poder se sentar em frente da velha máquina. Dormia durante o dia numa mesa circular de carvalho gasta pelo tempo e uso desde o instante em que a retirara do armário e a libertara do pó.
Fora no dia em que chegara a casa depois de descobrir que estava milionário. Uma herança proveniente de um familiar que ele nunca tinha conhecido nem tão pouco sabia que existia. Mas ali estava ela, nas suas mãos. O testamento dava-o como o único herdeiro de uma grandiosa fortuna que lhe daria para viver o resto dos seus dias sem precisar de trabalhar.
Se assim era, ele agarrou essa oportunidade como uma pessoa desidratada aproveitaria três gotas de água.
A partir daquele dia, deixou o emprego e passou a fazer o que mais ventura lhe trazia. Ler e escrever.
Família não tinha desde que os pais morreram sem lhe deixarem irmãos, estava ele no fim da juventude. Dos amigos nunca mais soube deles e dos conhecidos muito menos. Deixou de atender as chamadas e a campainha da porta. Até que numa altura deixaram de o incomodar.
Sentia que tinha morrido para a sociedade para viver para si próprio. E passado algum tempo, percebeu que estava morto para todas as pessoas que conhecera.
Não o aterrorizou, antes pelo contrário. Podia se sentir infeliz ou até culpado por ter desistido das amizades que tinha, mas depois de receber a herança temia não saber distinguir os verdadeiros dos falsos amigos. Não se surpreenderia que todos se tornassem demasiado calorosos apenas por interesse. Interesse no que poderiam obter dele depois de se ter tornado num homem rico.
Sentiu a contração de um leve sorriso cheio de ironia ao pensar como não queria que lhe fizessem o que ele sempre fizera aos outros. Não desejava ser usado. No seu egocentrismo fora apenas sociável para se aproveitar do que as pessoas poderiam dar-lhe sem nunca retribuir nada em troca. Além de egoísta, tornara-se avarento e não se admiraria se toda a gente se tivesse afastado dele por não encontrar um único aspeto de humanidade.
Várias vezes dava por si a perguntar-se se não teria sentimentos? Ou será que nunca soubera transmiti-los. Talvez só tivesse capacidade para comunicar através da escrita. Todavia era tarde para voltar atrás.
Ninguém mais o aceitaria de volta ao seio das amizades esquecidas, pelo que, o melhor seria deixar tudo como estava e continuar a gastar o dinheiro apenas consigo e no que o fazia inteiramente feliz. A leitura e a escrita.
Desviou o pensamento das recordações e prestou atenção ao relógio da sala. Outra relíquia. O som do pêndulo ao marcar as horas deixara de o afligir havia muito tempo e até as partículas do pó a soltarem-se dos ponteiros à medida que se moviam e avançavam pela noite dentro, eram como um bálsamo para a sua solidão.
Às 19h13 levantou-se do sofá e dispôs-se a preparar o sofisticado jantar. Uma suculenta lasanha vegetariana que em sete minutos estaria pronta no micro-ondas. Não tinha apetência nem paciência para mais. Quando ouviu a campainha do eletrodoméstico ao anunciar que a comida estava pronta, pensou de novo na sua melhor amiga. Nunca se desligava dela, nem mesmo quando dormia. De dia trabalhava nela e de noite… ou melhor… de noite trabalha nela e de dia sonhava com ela.
Imagens retorcidas repletas de palavras e frases apareciam-lhe em sonhos que ele depois tentava compreender e juntar como se fossem peças de um desordenado puzzle.
Devorou o jantar como um rafeiro devoraria um naco de carne, porém, não com tanta satisfação. No fim, tirou café expresso e serviu-se de um copo de whisky James Martin 20 anos. Ajudava-o a relaxar assim como o rádio que ligou mal chegou à sala.
De imediato a música Sweet Dreams banhou o aposento com as suas notas musicais em ondas flutuantes na versão mais sombria que já foi gravada… Marilyn Manson com o seu lado negro a dar outro sentido a uma canção já antiga.
Aquela entoação inspirou-lhe a vontade de voltar a dar música à sua máquina. Queria ouvir o bater das teclas e o som único do rodar do papel.
Sentou-se à frente da inestimável Royal e surpreendentemente, estacou. Não sabia o que escrever. Sentiu um vazio, as palavras pareciam fugir do pensamento. Tentou recordar livros que tinha lido, notícias de jornais, anúncios que tinha visto e nada…
Nada lhe vinha à memória. Nem o seu próprio nome e idade. Isso assustou-o, para não dizer que o deixou num pânico aterrador. Tentou perceber por que razão lhe acontecia isto.
Não saber a idade não era de estranhar, pois desde que se enclausurara na fortaleza da sua casa deixara de contar os dias e de comemorar os seus aniversários. Sabia que devia ter muitos anos e já não devia ser o jovem de outrora, pois os suaves cabelos brancos assim lho diziam bem como as rugas que de dia para dia vincavam o seu belo rosto e aniquilavam a sua jovialidade. Quer as cãs como as rugas vinham sem serem chamadas e ficavam sem pedir permissão.
Mas isso não o apavorava. Saber que estava a perder a sua beleza para uma iminente velhice não lhe tirava o sono, pois há muito que deixara de se preocupar com a aparência. A camisa branca desalinhada e as calças cor de areia fora de moda só a ele podiam incomodar.
Mas perder o talento artístico, sim. Não que alguma vez tenha revelado ao mundo as suas habilidades de escritor. O que escrevia era só para si. Poesia ou prosa eram as suas flores e apenas as cultivava para embelezar a sua própria natureza.
Ignorava se alguém seria capaz de nutrir os mesmos sentimentos que ele pelas suas palavras, mas pensar nisso não o afligia. O que o apoquentava era nunca mais vir a escrever uma palavra que fosse, viva ou morta, rica ou pobre, erudita ou moderna.
Só isso lhe dava alegria e prazer. Nada mais importava, nada mais interessava. Não escrevia para se exibir enquanto vivesse, mas para não ser esquecido depois que morresse. Mais as suas obras do que ele próprio.
Desejava deixar uma marca no mundo. Algo com que a humanidade pudesse aprender e adquirir conhecimentos através da sua sabedoria e recordar para todo o sempre.
Veio-lhe à memória um antigo provérbio chinês: «O sábio não se exibe e veja como é notado. Renuncia a si mesmo e jamais será esquecido». Desde que o lera, que tinha passado a seguir o exemplo de Lao-Tsé, um filósofo da China Antiga.
Fazer ecos das suas palavras para ser recordado era como abrir o seu coração e expor a sua alma ao mundo mesmo estando perto e longe dele ao mesmo tempo.
A escrita para si seria sempre como uma viagem ao interior da alma, um navegar nas brumas do coração até a um profundo sentir… um sentir sem medo como a valentia de um guerreiro e um sentir como o respirar.
Como o ar está para os pulmões, a escrita está para o espírito. O próprio inspirar do oxigénio para nos dar vida, repete-se com as palavras e as frases de cada texto conduzindo à complexidade das trocas gasosas nos alvéolos pulmonares.
O pêndulo fez barulho e Januário saiu do seu transe hipnótico. Faltavam vinte e três minutos para a meia-noite. Dali a pouco seria um novo dia, mais um no seu calendário da vida. Não se mexeu, mas desviou o olhar que outrora fora da cor das águas de um lago cristalino, agora era da cor do céu amargurado.
A folha branca continuava no mesmo lugar. Enrolada e à espera de ser usada, mas algo estava a impedi-lo.
Seria solidão ou tristeza? Não sabia, pois nunca antes sentira tal. Desde que começara a escrever que nunca se sentira sozinho, pois os seus jardins davam-lhe o júbilo necessário e mesmo antes, também não se recordava de tais sentimentos.
Ou seria a essência da vida que sem escrúpulos lhe corroía a beleza e a memória também?
Desviou a atenção do presente e viajou até ao passado. A música na rádio tinha parado e de um puxão só desligou a ficha da tomada. Serviu-se de mais um copo e cegamente procurou a envelhecida caixa de charutos cubanos Monte Cristo. Com dedos trémulos, tirou um e a caixa escura de madeira envernizada ficou reduzida a dois. Colocou o charuto abaixo do nariz e inalou-o. Percebeu que era um aroma que estava esquecido. Há vários anos que não se servia deles e perguntou-se por que motivo tinha tido a urgente necessidade de dar umas passas.
Não soube de onde pegou uma caixa de fósforos, só soube que em poucos minutos estava sentado à janela a contemplar o luar. Com o copo de whisky na mão esquerda e o charuto na direita, fumava tranquilo e pausadamente.
O odor inebriante do charuto levou-o de novo ao passado. Àquele país distante que há muito estava abandonado. Recordou um rosto não muito jovem, mas também não muito idoso. Talvez como o dele. Talvez parecido com o dele. O do seu pai.
O riso de uma criança chegou-lhe aos ouvidos. Por momentos pensou se tratar de um som vindo da rua, para depois chegar à conclusão que era o seu próprio riso de quando tinha cerca de três ou quatro anos de idade. As suas gargalhadas costumavam ter o dom de abrir sorrisos espontâneos nos rostos das pessoas. Mas a ele só lhe interessava o rosto de duas. Os seus pais.
Como uma névoa veio-lhe à memória um lugar harmonioso. Uma cabana em xisto rodeada por extensas planícies verdes não lhe revelava em que ponto do planeta se situava, mas era de certeza no campo ou na serra.
Deviam ser uma família pobre, mas gáudio nunca faltara. Nem mesmo nos piores momentos. Cresceu cercado por uma grandiosa sabedoria. Os seus pais incutiram-lhe valores e princípios que sempre o acompanharam, porém, tinha a sensação que após a morte deles, fora perdendo certas virtudes e também qualidades.
A alegria desaparecera para ficar no lugar uma estranha sombra que o conduziu até àquele ponto. As recordações chegavam-lhe em flashes como se a sua mente tivesse estado adormecida e envolvida numa prolongada amnésia.
De olhos fechados memorizou o rosto da sua mãe. Não precisava de nenhuma imagem, foto ou pintura para desenhar cada traço, cada linha, cada curva daquela face angelical. Respirou fundo e inspirou o seu perfume. Sabia a flores campestres trazidas ao vento. Os longos cabelos negros e os olhos violeta brilhavam aos raios de sol enquanto a farta cabeleira ondulava ao som da brisa matinal numa dança cadenciada.
Recordou uma manhã primaveril em que estavam só os dois. O seu pai tinha ido à cidade abastecer-se de mantimentos para o mês, e seguiu os passos da mãe até ao riacho onde ela lavava a roupa. Sentiu a água gelada a correr-lhe nos pés enquanto calcava os polidos seixos e o cheiro do sabão. Viu-a estender um lençol branco e pô-lo a corar.
Ouviu os cânticos das aves e vozes ao longe. Virou a cabeça ao escutar a sua mãe a chamá-lo. Soltou o pequeno tritão e correu para ela. Deu-lhe a mão e de olhos fechados acertou-lhe os passos até casa.
Abriu-os e avistou um rosto. Era desconhecido. Nunca antes o tinha visto. Estava muito próximo do seu, mas não sabia distinguir se era novo ou velho. Porém, era o de um homem. Piscou várias vezes e relaxou. Com um sorriso reconheceu o rosto do seu pai.
Tinha chegado e trazia consigo muitas coisas boas. Deu-lhe um chocolate e o comboio que lhe prometera trazer. A linha-férrea já estava construída, só faltava a locomotiva.
Brincou o resto do tempo com o seu mais recente brinquedo e no dia seguinte acompanhou o pai à caça. Ansiava pelo momento em que ele o ensinaria a usar a espingarda. Desejava ser tão bom atirador como o pai. Apanharia de tudo ─ patos, coelhos, tordos, até javalis se fosse preciso, mas comida nunca faltaria. No entanto, esse dia nunca chegou.
Não estava presente quando anos mais tarde a morte levou os seus pais de uma rajada só. Os horrores que sentiu quando chegou e os encontrou mortos, nunca contou a ninguém e guardou no seu mais profundo intimo.
Um sobre o outro, os corpos repousavam inertes e sem vida no chão em frente da lareira. Assim viveram e assim permaneceriam na cova da sepultura. Abraçados.
Demasiada inalação de monóxido de carbono causara a prematura morte deles, num inverno que fora muito mais rigoroso com aquela pequena família ao deixá-lo órfão do que com o planeta inteiro.
No próprio dia do funeral, fez as malas e partiu daquele lugar. Nunca mais quis ter que ver com um sítio que tanta felicidade lhe dera, mas mais infelicidade lhe causara.
Foi para a cidade e lá cresceu. Cresceu como pessoa, mas também como homem. Conheceu muitas mulheres. Umas novas, outras velhas. Umas casadas, outras solteiras. Filhos, não fez nenhuns. Corações partidos, deixou muitos.
Voltou a ouvir vozes. Barulhos impercetíveis e rostos estranhos. Um som estridente começou a causar-lhe um certo desconforto. Quis ignorá-lo para voltar às recordações antigas, mas não foi capaz. Era impossível concentrar-se enquanto aquele ruído se mantivesse. Perguntou-se de onde viria. Perguntou-se até o que estava a causar tanta poluição sonora aos seus cansados ouvidos.
No início pensou que vinha da rua. Era um timbre agudo e persistente saído de um profundo longínquo. Não podia ser da sua casa. Era impossível vir de sua casa. Isso aborreceu-o um pouco. Pois percebeu que não tinha qualquer controle sobre o barulho. Queria terminar com ele, viesse de onde viesse. Incomodava-o demasiado. Quis voltar ao passado. Não conseguiu e de repente recordou:
A cozinha… estava na sua cozinha. Tinha terminado o jantar e levava o prato até ao lava-loiça. Com os seus habituais passos pachorrentos e gestos lentos colocou a loiça no interior da bacia. Levou uma mão à raquítica torneira e abriu-a. Podia não estar com vontade para se pôr a lavar, mas não podia deixar que a gordura secasse. Com os olhos vidrados observou o jorro de água a sair pelo cano e bater contra o prato verde cor de esperança.
De repente, sentiu-se muito só. Uma dor profunda abalroou-lhe o peito e atingiu-o como a força de mil furacões. Trespassou-lhe a pele, esgueirou-se por entre as costelas e repousou no coração.
Foi para a sala. Não queria sentir aquele tormento, mas estava teimoso em ir embora. Precisava urgentemente de o dissipar da sua vida e da sua mente. Atabalhoadamente aproximou-se do móvel onde estava o rádio. Pelo caminho derrubou um candeeiro de pé alto e várias peças decorativas ─ pequenas estatuetas trazidas de uma viagem não se recordava agora a que país. Talvez América do Sul ou Ásia.
Ligou o rádio e como a bonança que chega para acalmar a tempestade, escutou a canção Sweet Dreams. Sentou-se no sofá. Novamente a mesma dor apoderou-se dele. Desta vez com mais força ainda. Não teve tempo de pensar nela, nem sequer no que lhe aconteceu a seguir. O corpo tombou. Estava excessivamente pesado para o conseguir suster. Já não conseguia estar sentado, mesmo assim quis levantar-se. Não conseguiu. O chão foi o único lugar onde encontrou a paz que tanto procurava. Se era o melhor sítio para estar, não sabia. Também não se interessou em pensar nisso. Os olhos pesavam-lhe. Estava com muito sono. Demasiado até. Adormeceu.
Não tinha noção de quanto tempo depois voltou a abrir os olhos. Abriu-os devido aos sons e às vozes que ouvia. Voltou a ver os rostos desconhecidos. Eram pessoas que nunca tinha visto antes, mas ao mesmo tempo eram familiares. Algo nos seus movimentos, nas suas vestes o alertava para o facto de que não era assim tão estranho quanto pensara.
Demorou em conseguir mudar as vozes de impercetíveis para percetíveis. Quando o fez, alarmou-se. Escutou o que diziam e assustou-se. Que queriam eles dizer com aquilo? Estamos a perdê-lo! Ouvia. Dois homens gritavam, davam ordens na sua própria casa sem que ele pudesse fazer nada para os mandar embora.
Como era possível aquela invasão à sua fortaleza sem autorização?! Quis pô-los na rua, mas percebeu que estava amarrado. Amarrado ao seu corpo inerte. Não mais tinha poder sobre si mesmo. Perdera-o quando sentiu a dor. Uma dor que julgara vir da alma, mas que afinal vinha do físico.
Ouviu choro. Seria de crianças? Não. As crianças não acompanhavam o choro com lamentações. Estas pessoas faziam-no. Várias mulheres choravam e ao mesmo tempo lastimavam o que estava a acontecer-lhe. Mas o que estava a suceder, meu Deus?
Percebeu que era a primeira vez em cinquenta e seis anos de vida que se dirigia ao Ser Superior. Porque será que de repente soube a idade que tinha? Não encontrou resposta, mas por incrível que pudesse parecer, agora recordava-se com mais nitidez de toda a sua vida.
Voltou a relembrar quando saiu da sua terra após a morte dos pais. Foi para a cidade. Viveu muito em pouco tempo. Queria esquecer o passado. E não queria viver o mesmo amor que os pais tinham nutrido um pelo outro. Eles foram felizes e morreram felizes. Juntos como sempre andaram desde que se conheciam. Desde que nasceram no mesmo dia e à mesma hora. Os pais deles eram vizinhos e as duas crianças amaram-se desde tenra idade. Brincaram juntas e prometeram ficarem sempre unidas até que a morte os separasse. Deus fez-lhes a vontade.
Mas ele não suportaria amar de uma forma tão intensa. E se Deus não o ajudasse na sua intenção? Também quis sentir o mesmo. Porém, sempre temeu que a morte o separaria da mulher amada muito antes de ele estar preparado. Não aguentaria se a perdesse primeiro. Como viveria depois sem ela? Sem o seu apoio e o seu amparo.
Por isso nunca amou. Ou talvez sim. Amou todas as mulheres que teve, mas não o suficiente para se agarrar a uma só. Era feliz assim e nunca lhes deu esperança. Elas lamentaram. Oh, se o fizeram. Mas nunca conseguiram demover o seu coração de pedra.
Era frio como os glaciares da Sibéria, diziam elas. Nada disso o enterneceu. Depois veio a herança. De um parente desconhecido. Mas será que era assim tão desconhecido? Tinha vinte e seis anos quando recebera a notícia que o pusera em estado de choque durante várias semanas para depois encher-se de uma imensa felicidade. Tão grande que abrangia cinco continentes e sete mares.
Agora revivia como no dia em que a sua vida mudara. Os seus pais eram o familiar esquecido. A fortuna era deles. Eles eram milionários e ele nunca soubera. Ou melhor… não eram. Mas fizeram dele um homem muito rico com uma pequena poupança que rendeu muitos e muitos juros ao longo dos anos.
Nunca soubera de tal situação. Todavia, os seus pais tinham pensado no seu futuro e ele devia estar-lhes agradecido por isso. Em certa medida estava. Depois de recuperar do choque inicial, veio a mudança radical.
Largou a vida que tinha, os amigos e o emprego. E enclausurou-se no seu refúgio. Nunca mais falara com ninguém e a única forma que tinha para sentir o agitar da sociedade era quando ia à janela. Viver assim nunca o incomodou. Era feliz e viveria outros trinta anos se fosse preciso. Pensava ele. Até ao dia em que sofrera uma dor dilacerante no peito. Até àquele momento.
A dor não vinha do espírito. Ou talvez sim. Trinta anos essa dor teve para o consumir por dentro. Trinta anos a depositar solidão, mágoa, tristeza, infelicidade no seu sólido coração.
Percebia agora que não era tão resistente como julgara. Tentou sempre ignorar tais sentimentos. Ele não os sentia. Era impossível. Ninguém precisava destas sensações. Mas elas vieram e não desapareceram. Foi o que lhe aconteceu. Possivelmente se tivesse tido alguém ao seu lado… uma mulher para amar e ser amado… provavelmente estas dores não se instalariam tão facilmente nem sequer ruminariam as suas entranhas da forma como o fizeram.
Agora era tarde. Tão tarde que já tinham feito desabrochar a consequência da sua ação. Com dedos habilidosos tinham estado a apertar o seu coração até o fazerem perder todas as forças que ainda lhe restavam. Primeiro de uma forma espiritual, depois no culminar do ataque cardíaco que tinha sofrido logo após o jantar.
Os dez minutos que precederam à queda fulminante quando estava sentado no sofá a ouvir Marilyn Manson irromperam pelos meandros da sua memória como se estivesse a vivê-los novamente.
Tinha acabado de deixar o prato no lava-loiça e aberto a torneira quando lhe deu a primeira dor. Sem se lembrar de voltar a fechar a água, dirigiu-se para a sala, sentou-se no sofá e a dor voltou obrigando-o a adormecer. Não morreu. Sabia que não, mas desmaiou. Não havia dúvidas de que ao desfalecer para o chão tinha perdido os sentidos.
Posteriormente entrara noutra dimensão. Num outro mundo. No seu passado. Toda a sua vida veio-lhe como num sonho. Um sonho belo e tranquilizador enquanto na realidade a equipa médica lutava para o reanimar e trazê-lo de volta ao presente.
Finalmente reconhecera os rostos. Continuavam a ser desconhecidos, mas já não eram estranhos. Dois rapazes davam-lhe choques elétricos e durante esse tempo todo as vozes misturavam-se num barulho ensurdecedor entre gritos, choros e apitos.
As mulheres não paravam de chorar. Deviam ser suas vizinhas. Não sabia. Nunca as tinha visto, mas só podiam ser suas vizinhas. Fazia sentido se fossem. Fazia sentido que a água que continuou a jorrar da torneira não tivesse parado e tenha inundado o lava-loiça. Depois dele, o chão da cozinha e dali o hall da entrada até escapulir-se por baixo da porta e surgir nas escadas do prédio.
Isso deve tê-las alertado, que devem ter chamado o INEM. Não sabia quanto tempo passou até tal acontecer, nem tão pouco sabia há quanto tempo estavam de roda dele.
Quis levantar-se, mas não podia enquanto mantivesse os olhos fechados. Mas ele não estava com os olhos cerrados. Sabia que não. Porém, também não os tinha totalmente abertos. Deixou-se ficar naquela dormência, com a vista semicerrada e a presenciar tudo o que se passava em seu redor através de uma névoa cinzenta.
O olhar estava tenebroso, o corpo letárgico, o cérebro adormecido e o coração parava.
Ouviu um último som. Agudo, estridente de uma máquina. Depois deixou de escutar. Um peso nos olhos obrigou-o a fechá-los. Era um peso suave, morno. Tão cálido quanto delicado. Era o peso de uma mão que repousara no seu rosto e com infinita opressão o compelia a fazer o que não queria. Morrer.
O seu corpo não reagia e o seu coração abandonava o sofrimento. Soltava as amarras e abraçava a paz profunda, conciliando a infelicidade com a felicidade num sono eterno.
Januário morria de solidão, mas não morria sozinho. Estava rodeado pelos seus jardins de palavras. Os livros que tanto amara, mais até do que a si próprio.
Era a sua derradeira estória, mas a vasta biblioteca que deixava à humanidade faria ele ser recordado pela imensa sabedoria.
Januário sabia isso. Oh, como sabia!
FIM
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico.
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